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Sucesso de público e crítica em 2009, o espetáculo escrito pelo canadense Daniel McIvor e dirigido por Enrique Diaz é remontado com o próprio Enrique como um dos atores protagonistas, ao lado de Emílio de Mello.
Transcrição
00:00A CIDADE NO BRASIL
00:30Algumas coisas acontecem porque foram cuidadosamente planejadas.
00:36As pessoas se casam, alguém constrói um barco, uma pessoa escreve uma peça.
00:42Coisas que acontecem entre listas de convidados, letras miúdas, religiões.
00:47Mas existem as coisas que acontecem a despeito do nosso controle.
00:51Coisas que se enfiam na nossa vida e simplesmente acontecem.
00:56Coisas arbitrares podem mudar a sua vida e parecem não fazerem nenhum sentido.
01:04Coisas que precisam que a gente invente um sentido para elas.
01:08Muitas coisas, muitas coisas. Pequenas coisas como a música que o nosso amante escuta.
01:17Coisas maiores como a forma como podemos perder o chão debaixo dos nossos pés como se alguém tivesse puxado o nosso tapete.
01:27Coisas imensas.
01:28A peça fala primeiro, né? Fala de jogo, fala de perda, fala de reflexão, fala sobre a condição humana.
01:41É um tema bem complexo, mas acho que o Daniel consegue fazer isso de uma maneira, no texto dele, né?
01:48De uma maneira muito suave, leve.
01:50É uma peça com uma estrutura muito engenhosa e, ao mesmo tempo, muito comunicativa.
01:56Ela tem três camadas.
01:58Uma é como se fosse esses atores aqui agora, nesse lugar, com esse público, presentes.
02:05Tem uma relação que você não entende direito.
02:07Depois tem uma peça dentro da peça, que eles ficam entrando e saindo, comentando a peça.
02:12Isso é bastante claro, porque você entende a peça e entende que tipo de comentário eles estão fazendo.
02:17E depois aparece o passado desses dois personagens.
02:21E aí o jogo de que lugar a ficção tem na relação de um desenvolvimento de passado e de presente
02:28é uma coisa quase psicanalítica, também no melhor sentido,
02:32que é a gente perceber como a gente é atravessado pelos afetos, pelo outro, pelo nosso imaginário.
02:38O que a gente imagina da gente mesmo e como é que a gente projeta isso numa obra de arte.
02:42A peça foi um sucesso, viajou a Bessa e tal.
02:44Fizemos vários anos, a partir de 2009.
02:48Então a gente sempre achou que seria bom retomar essa peça sempre que possível.
02:52Quem é esse nós? Fala pra mim, quem é esse nós? É você e quem?
02:56Você e todos os outros médicos?
02:58Você e todas as pessoas saudáveis?
03:01Você e a Ellen?
03:03Ela é burra.
03:05Sabia que sua secretária é burra? É uma burra.
03:07Não consegue lembrar o meu nome?
03:09Eu venho aqui há mais tempo do que ela trabalha com você e ela não consegue lembrar o meu nome.
03:14Isso é pura burrice, né?
03:15Ou é malícia, sei lá.
03:17Mas ela não parece ser inteligente o suficiente pra ter malícia, não.
03:20É burra mesmo.
03:20É, você tá chateado, isso é perfeitamente compreensível, Raymond.
03:24Você tá se divertindo com isso, né?
03:26Como assim?
03:26Tá adorando poder fazer papel de médio, né?
03:28Papel de médio? Não, é, vamos voltar.
03:30Ah, tá rindo isso, tá rindo.
03:32Cala a boca, ô!
03:34O que você acha que é um Marcus Welby, um George Clooney da vida?
03:39Eu, particularmente, tive uma história muito afetada pelo fato de eu gostar de atuar e gostar de dirigir também.
03:47Então, em muitos momentos da minha vida, eu dirigi mais do que atuei e outros atuei mais do que dirigi.
03:52Em alguns casos, que foram bem interessantes, aconteceu isso, eu dirigi uma peça e acabar entrando no lugar de algum ator na peça.
04:00Na hora que você entra pra fazer, você que tá dirigindo, entra pra fazer, você tem a memória desse processo, tem um afeto por esse ator ou essa atriz que você tá substituindo,
04:10porque aquilo foi o jeito que aquela pessoa fez, né?
04:13Então, aqui nesse caso, que eu tô substituindo o Fernando Eiras, que é um ator incrível, eu aprendo com ele, eu herdo coisas dele, eu imito ele.
04:22Ao mesmo tempo, eu faço coisas de um jeito diferente do jeito que ele fazia, porque eu penso de uma maneira também diferente.
04:29E tem toda a memória de todas as sessões que eu assisti com ele.
04:33E o trabalho dele com o Emílio sempre foi muito lindo.
04:36E agora eu tô dentro e tenho que me relacionar com o público.
04:39É uma peça de muito jogo, né?
04:41Então, tudo que você faz depende do outro.
04:44Então, quando você muda um ator, você muda toda essa estrutura do jogo, né?
04:50Porque o jogo é outro.
04:52É outra dinâmica, é outra percepção do personagem.
04:58É quase como se você visse o mesmo espetáculo por pontos de vistas diferentes.
05:04E aqui, agora no Tuca, vai ser tão legal isso, porque como é uma arena,
05:08você pode olhar pra peça de vários pontos de vistas, né?
05:13Então, ela não tem só a frente, né? Ela tá por todos os lados, assim.
05:17Então, isso é muito interessante.
05:19Eu acho que é mais uma novidade que a gente vai enfrentar aqui nessa temporada paulista.
05:24Tá, o que a Júlia representa?
05:26Ela não é importante, é um personagem secundário.
05:28Tudo bem, mas ela tem que representar alguma coisa?
05:30É, não, não tem.
05:32E Elaine?
05:33Quem?
05:33Elaine, a secretária.
05:35Elaine, a recepcionista.
05:36Isso, ela é o quê?
05:37Burra, né?
05:38Onde é que você tá querendo chegar exatamente com isso?
05:40Porque as mulheres não são retratadas de uma forma muito positiva na sua peça.
05:45Ah, é como isso?
05:46Não, nada não. Nada não. Só que algumas pessoas, né, podem achar, não sei, que você tem problema com as mulheres.
05:54Eu não tenho problema com as mulheres.
05:55Não estou falando que você tem, estou falando que algumas pessoas podem achar que você tem problema.
05:59Se alguém aqui, nesta equipe de televisão, tem problema com as mulheres, essa pessoa é você.
06:03A peça, ela não é cifrada, mas ela não é óbvia.
06:06O espectador participa no sentido de fazer as ligações de uma maneira sofisticada.
06:12E isso inclui trocas de personagens e trocas dessas camadas que a peça tem de uma maneira muito bem encaminhada pelo Daniel Macaibur, que é o dramaturgo.
06:22Ele ajuda você a falar, ah, agora tá naquele outro plano.
06:25Ah, esse personagem é aquele que na outra cena saiu de tal maneira.
06:28E a gente, como se fôssemos os cavalos desses acontecimentos, a gente recebe.
06:33Passar de um personagem para outro sem nenhum recurso, com o único recurso que é o nosso instrumento, que é o nosso corpo, a nossa voz,
06:42isso é um, isso para um ator é um grande presente, né?
06:47É um grande desafio, enorme, enorme, desafio enorme.
06:51Talvez uma das peças mais difíceis, assim, que eu já tenha feito, no sentido de execução mesmo, né?
06:59Você precisa estar muito preparado para ela e, ao mesmo tempo, é uma das peças mais divertidas que eu já trabalhei.
07:05Tanto é que a gente não consegue largar ela, né?
07:07Algumas características dela, talvez a gente possa falar, ah, sabe, essa peça não foi escrita agora.
07:13Mas eu acho ela tão contemporânea no sentido da relação com o sentimento, a relação com a autoimagem, com a auto-percepção,
07:21na relação com o afeto, na relação com a criação, com a arte, com a verdade,
07:26que a impressão que dá é que esses 16 anos não fazem diferença.
07:32Eu diria que é um clássico contemporâneo.
07:36Eu acho que essa peça é um clássico contemporâneo.
07:37Eu acho que é uma obra-prima de dramaturgia.
07:39Então, muita coisa mudou no mundo e isso é interessante a gente perceber a peça em relação a isso,
07:46mas não acho que ela seja devedora desse gap temporal, assim.
07:54Pelo contrário, ela resgata coisas que... é bom que a gente resgate agora.
07:59Não dá para você saber de onde vem uma pessoa, quais são as particularidades dessa pessoa,
08:05como é que ela se afeta com coisas.
08:06Menina, era só uma conversa.
08:07Não é por isso religiosa.
08:08E as religiosas não gostam?
08:09Ela podia ter questões, como sei lá o quê.
08:11Ai, você é muito status quo.
08:16O que será que ele quer dizer com isso?